- Eli! Eli!
Era Vitor me chamando. Eu sabia porque meus olhos ainda o viam mexer a boca e pronunciar meu nome. Foi a primeira vez que eu tive vontade de me levantar.
Desde o dia em que me colocaram nesse mundo, eu vivi sob os cuidados de uma família de empresários e seu filho. Eu servia aquela família desde que Vitor era apenas um ser indefeso e não conseguia sobreviver sozinho.
- O que é esta coisa? – perguntei.
Não achei que o que eu disse foi grosseiro, mas a mulher pareceu achar, atirou um vaso de vidro em minha direção, e ele se quebrou na parede.
- Não é esta coisa. É meu filho. E você está aqui para cuidar dele. Agora, aprenda a segurá-lo.
O casal então deixava sempre seu filho aos meus cuidados, a empregada dizia que o bebê precisava do leite da mãe, mas era eu quem dava o leite que o casal trazia para casa.
- Coitada dessa criança – dizia sempre a empregada para si mesma, como se eu não existisse.
Vitor começou a crescer rapidamente e aprendia coisas novas a cada dia, seus pais me ordenavam que o forçasse a ficar de pé e a falar, mas quem acabou ficando encarregada disso foi a empregada, porque não queriam que meus braços asperos apertassem os bracinhos fininhos de seu filho, e eles temiam que o garoto começasse a falar como eu.
Algum tempo depois, quando Vitor já estava bem crescido, mandavam-no para a escola de manhã e ele voltava para casa só. A empregada sempre estava com o almoço pronto e eu o ajudava com suas lições, mas logo Vitor perdeu o interesse em estudar.
- Eli, você nunca vai morrer, não é? – Ele me perguntou.
- Morrer?
Morrer? Eu desconhecia o significado daquela palavra.
- Ah, deixa pra lá – falou Vitor, se levantando do sofá. Ele pegou o caderno que estava em cima da mesa e veio devagar em minha direção, então, acertou minhas costas com o caderno. Eu não entendi porquê ele fez aquilo, mas não pareceu satisfeito e continuou batendo.
- Você não sente dor! Então você nunca vai morrer! Você vai ficar aqui para sempre!
Ele começou a gargalhar na minha frente, e derrubou o caderno no chão.
Daquele dia em diante, Vitor começou a me tratar daquela maneira, me desprezava, ria de mim, me batia quando estava bravo e parou de chamar meu nome, quando falava de mim era como se se referisse a uma coisa.
Quando Vitor já estava na sua adolescência e cursava o ensino médio, as coisas pioraram para mim. Sempre que ele aparecia com uma nota ruim na escola seus pais começavam a me ameaçar, diziam que não iam mais me sustentar e iam me colocar na rua.
Não era minha culpa, Vitor não estava estudando porque não queria, mas eu tentava ajudá-lo.
- Como você pode me ensinar, se você nunca saiu por aí para aprender as coisas?
- Eu possuo uma grande quantidade de conhecimento.
- Pare de falar desse jeito!
- Eu só sei falar desse jeito.
- Então pare de falar comigo!
- Seus pais me obrigam a falar com você!
Vitor ficou em silêncio, minha fala ainda estava sendo processada em minha cabeça. Era como se nós dois estivessemos mudos. Aquelas palavras não deviam ter saído da minha boca, eu fui proibida de falar daquela maneira. Não fui proibida de pensar, mas eu realmente falei. Vitor ainda me olhava paralisado.
- Sua... Você é um monstro! Você nem deveria existir! Tomara que você morra enferrujada!
Vitor e eu começamos a seguir caminhos separados, apesar de vivermos na mesma casa. Nossos olhares nunca se cruzavam, mas nós dois fingiamos que estava tudo bem para seus pais.
O garoto começou a criar um caos em sua vida, passava a maior parte do tempo fora de casa, levava garotas para o seu quarto, escondido, e sabia que nada ia acontecer já que seus pais não participavam de sua vida. E mesmo se ficassem sabendo de tudo, Vitor já tinha idade para fazer o que bem quisesse.
Eu não contava nada aos pais dele, afinal, o bem dele não me importava mais, mas quando começaram as reclamações dele vindas dos vizinhos ou das mães de seus amigos, os pais começaram a me desprezar também, assim como ele fazia. Parecia que minha história naquela casa tinha chegado ao fim, então eu fui mandava para a rua. Vitor se despediu de mim com a expressão vazia pela janela. Eu estava saindo da casa onde vivi, mas realmente não levava nenhum sentimento daquele lugar e daquelas pessoas. Viver na rua não deveria ser ruim.
A madrugada chegou e uma chuva devastadora começou a cair, eu estava vagando pelas ruas para observar o mundo que eu não conhecia. Mas naquela hora, tudo estava coberto pela chuva cinza.
Levantei a cabeça para tentar ver a lua, mas não a encontrei, as gotas da chuva estavam me cegando. De repente, ouvi um murmúrio vindo de longe, parecia uma risada, uma risada e então um grito. Eu conhecia aquela voz. Segui o grito que continuava, era difícil enxergar, mas logo a voz se tornou mais alta e eu a encontrei.
Um grupo de garotos estava correndo para longe do lago, como se estivessem fugindo. Foquei meus olhos para dentro do lago que formava ondas violentas e vi uma pessoa se debatendo.
- Eli! Eli! – ouvi Vitor chamando. Ele se afogava dentro do lago. Eu fui até a margem para ter certeza de que era mesmo ele.
- Me ajude, por favor!
Eu o observava, sem saber se ajudava ou não.
- Eli, por favor!
Eli. Era meu nome.
- Eu não quero morrer!
Era mesmo Vitor, e então eu me decidi. Pulei no lago e segurei uma pedra na margem, estiquei meu braço o máximo que pude em direção ao Vitor.
- Segure.
Ele esticou o braço também e eu o peguei, me esforçando para não soltar a pedra. Fiz força para puxá-lo junto de mim.
- Segure na pedra e suba.
Fiz com que ele chegasse até a pedra, a chuva amenizou um pouco e a água não estava mais tão violenta, Vitor subiu na margem do lago e me puxou. Nós dois caimos no chão. Ele estava muito cansado, respirando com força e tossindo.
- Eu pensei que eu fosse morrer.
Morrer? Vitor ia morrer?
- Eu e meus amigos estávamos tentando pegar meu relógio que caiu no fundo do lago e a chuva começou. Haha, no fim, eu consegui o relógio.
Por que estava me contando isso?
- Obrigado, Eli.
Ele estava mesmo me chamando de Eli.
- Nunca pensei que você se importaria comigo.
Eu não sei o que isso significava, eu fiz isso porque... precisei? Não.
- Sabe, eu não queria que você fosse embora.
Fiz aquilo porque me importava. Sim, eu me importava.
- Me desculpe, Eli. Por tudo.
Desculpar? Pelo que você deveria se desculpar? Eu nunca reclamei de nada.
- Sabe, acho que se eu falar com meus pais eles te deixam voltar. Você não quer?
Voltar para lá?
- Você vai ficar sozinha na rua, é perigoso.
Sozinha? Eu sempre fui sozinha.
- Vamos, Eli. Eu falo com eles.
Vitor se sentou ao meu lado.
- Suas roupas estão molhadas, você precisa trocá-las.
Ele se aproximou de mim e eu pude ver seu rosto ensopado. Seus olhos se arregalaram quando encontraram os meus.
- Eli, Eli!
O quê? Eu estou aqui. Tentei me levantar, mas meu corpo não saiu do lugar, e eu finalmente o senti inundado de água, meu sistema estava sendo danificado.
- Eli, Eli, levante-se!
As palavras não saiam da minha boca, eu não conseguia me mexer. De repente também parei de escutar, só meus olhos funcionavam.
- Eli, não morra.
Morrer? Essa foi a última coisa que ouvi. Então, isso é que era morrer.
- Eli! Eli!
Era Vitor me chamando. Eu sabia porque meus olhos ainda o viam mexer a boca e pronunciar meu nome. Foi a primeira vez que eu tive vontade de me levantar.
A luz do sol não faz meus olhos arderem. A água da chuva não toca minha pele. Eu não sinto tristeza nem felicidade. Eu sou o nada. E ao mesmo tempo, eu sou o tudo. O mundo me pertence e eu pertenço ao mundo.
Esse é um conto que escrevi há pouco tempo, recebi muitas críticas boas sobre ele, então estou passando aqui. Espero que gostem! ;D
Bom, estou aprendendo a mexer no blog!
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